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janeiro 18, 2005

Percepção da impunidade

Num primeiro momento, fazer batota é benéfico para os prevaricadores, embora prejudique o país. Num segundo momento, prejudica todos, incluindo os próprios batoteiros. Uma empresa faz batota, por exemplo não pagando impostos. Se pagar, o Estado tem mais dinheiro para investir na melhoria das infra-estruturas que beneficiam todos. Mas, se não pagar e outras o fizerem, beneficia das infra-estruturas criadas e ainda pode investir directamente em si mesma. A falta de ética beneficia os batoteiros, mas faz com que o Estado tenha menos dinheiro para investir no bem comum. Uma empresa que pague os impostos está em desvantagem, pois possui maiores encargos financeiros. As empresas que não pagam impostos podem vender os seus produtos a custos inferiores, o que lhes dá uma importante vantagem competitiva. A ausência de ética beneficia os batoteiros, mas distorce as regras de mercado. Enquanto as empresas obtiverem lucros fugindo aos impostos, têm menos incentivo para investir na inovação e gerar produtos com maior valor acrescentado. O que lhes limita a competitividade, sobretudo no mercado global. É impossível competir com empresas de países onde a ética estimula a produção bens inovadores mais apetecíveis. Mas é também impossível competir com empresas de países com salários baixos que produzem bens a custos muito inferiores. As desvantagens da ausência de ética não ficam por aqui. Leva à desconfiança e impede a colaboração entre indivíduos. Se os clientes não pagam regularmente, os riscos de efectuar uma transacção crescem desmesuradamente, levando a que os agentes económicos diminuam a sua actividade. Constitui também um factor desmotivador de investimento exterior. Provoca conflito, absorvendo energias e recursos financeiros, diminuindo consequentemente a produtividade. Se implicar desrespeito pela lei, conduz a um aumento de acções judiciais, acabando por absorver também recursos sociais. Há milhares de casos que atingem tribunal, o que não ocorreria se houvesse mais ética. Turva as regras sociais, não permitindo perceber com clareza os princípios orientadores do comportamento. Por exemplo, é proibido estacionar em segunda fila, mas se um indivíduo o fizer e não for sancionado, a regra efectiva não é a lei. Um indivíduo respeitador, ao verificar que estacionando bem se atrasa enquanto que os outros chegam a horas, é estimulado a subverter a lei. Ao estacionar mal dificulta, porém, a circulação. O desrespeito tem vantagens individuais imediatas, mas acaba por prejudicar todos. Finalmente, desmotiva o trabalho. Se as organizações não forem regidas por princípios de ética, rapidamente se produz mau ambiente. O trabalho deixa de ser fonte de prazer e os indivíduos sentem-se desmotivados, produzem pouco e anseiam pelo fim do dia. Como aumentar, então, os princípios de ética numa sociedade democrática? A solução é desenvolver um código de ética, de tal forma forte que o indivíduo sinta pressão social para cumprir as regras. Existem várias medidas possíveis. Uma é clarificar as regras. Tarefa de sociólogos, filósofos, psicólogos e juristas, mas também de todos. As regras devem ser sensatas. Mais vale admitir que o limite de velocidade na auto-estrada é 140 km/h e todos cumprirem, do que manter 120 km/h e poucos respeitarem. Depois, é necessário apostar na formação dos cidadãos. A escola não deve servir só para transmitir conhecimentos humanísticos e científicos, mas também para incutir valores éticos e sociais elementares. Outra medida é valorizar publicamente casos exemplares de respeito pelo código e denunciar firmemente casos de flagrante violação. Aqui os media, mas também todos temos um papel importante. Queixarmo-nos com frontalidade a quem não cumpre as regras é salutar. Outra ainda é aumentar o policiamento e a fiscalização. Esta medida desequilibra a balança dos benefícios individuais imediatos. Se estacionar mal significar com grande probabilidade ser multado, as desvantagens sobrepõem-se às vantagens. Complementar desta medida é tornar os tribunais mais fluidos. Se o tempo decorrido entre o acto de desrespeito pela lei e o respectivo castigo for curto, não há lugar à percepção de impunidade do acto e o factor dissuasor do castigo é mais eficaz. O risco é transformar o país num Estado autoritário. Pode parecer uma contradição a existência de uma autoridade firme num Estado democrático, mas é a falta de autoridade que poderá pôr em perigo a democracia. Existe em alguns sectores da sociedade portuguesa desconfiança crónica relativamente aos agentes de autoridade, que se poderá explicar por estes terem sido o rosto repressivo da ditadura. Mas trinta anos passados sobre o 25 de Abril é altura de compreendermos que a autoridade é indispensável para que a democracia funcione bem.

JOSÉ PINTO DUARTE

Público/Economia, 17 de Janeiro de 2005 (lembrança do CM)